terça-feira, novembro 14, 2006

Sessão Biográfica - Seu Júlio

Este não é um blog autobiográfico. Este é um blog sobre conhecimento, cultura e gente.
Perdoem-me os mais conservadores porém este post terá que ser. Escrevo este post como se fosse uma homenagem.

Nunca ouvi falar de Felixlândia, mas o acaso fez que eu tivesse o prazer de conhecê-la. Felixlândia é uma cidade à 200 km de Belo Horizonte, cidade que estou à trabalho e de onde digito este post.
No sábado passado, à noite, fui de avião para Brasília (onde estive os 4 mêses anteriores) para pegar um carro que comprei no mês retrasado. O plano era trazê-lo de Brasília para BH, dirigindo. É um Lada Niva (paixão antiga de carro velho) que me custou R$ 4mil reais, que já ficaram em 6 contando a temporada que ele passou no Doutor dele lá em Brasília.
Confesso que foi uma viagem relativamente complexa. No sábado o vôo programado para às 22:25 chegou às 01:30 em Confins(graças à esta confusão atual dos planos de vôo e operação). Cheguei 03:00hs da manhã na casa de um amigo querido em Brasília apenas para dormir, levantar e sair. Entretanto, como não nos víamos a algum tempo ficamos conversando noite afora, conversa esta que provavelmente aborreceu alguma atual pretendente dele que esperava-o num quarto fechado. Durmi na sala, num colchão velho, o sono dos justos.
Acordei às 08:30 de domingo sendo cutucado por ele e ouvindo:
-Negão, vc não ia sair às 07:00hs?
Após uma rápida despedida já me encontrava na estrada à 8o km/h (velocidade particular dos Ladinhas), meus companheiros de viagem, apenas um guia 4 rodas e um maço de cigarros.
Aqui cabe um aparte sobre as estradas de Minas, em particular a BR 40. Após o trecho do DF e de Goiás , em Minas é só pasto, plantação, montanha, umas casinhas antigas além de uns raros assentamentos do MST. As cidades são muito espaçadas e são pequenos seus trechos urbanos.
Me encontrava já passados 15 km de Felixlândia quando o carro parou. Eram 18:00hs, e tinha rodado uns 550Km, faltavam 200.
E o carro parou no meio do nada. Logo depois de um córrego com o sugestivo nome de Ribeirão Manso. Parou mesmo, ligava mas não mantinha a rotação, provavelmente danificada estava a bomba de gasolina.
No meio da estrada vazia eu me encontrava. A cada 5 minutos passava um caminhão e eram raros.
Anoiteceu. O guia tinha o telefone da polícia rodoviária e da concessionária mas o celular não pegava, falta infra estrutura no Estado. Vivi estes últimos 5 mêses morando sozinho sempre rodando à trabalho, primeiro em Brasília e depois em BH e confesso gostar da liberdade. Mas sozinho no meio da estrada, tentando parar alguém, parecia testar esta minha noção, repensá-la talvez era a que eu me forçava, exagerara na curtição?
Auto controle. Breu total. Lufadas de ventos e barulho dos caminhões. Nínguem parava. Atravessei a pista. No meio da faixa um sinal para um par de luzes. E um grito também:
-Ajuda!
Uma caminhonete parou.Deu a volta e abriu o vidro:
-Olá o que foi? Sotaque castelhano forte.
-O meu carro quebrou é o Lada ali.
-Ah, te levo no mecânico sobe aí.
Era um senhor de uns 60 anos, baixo e um pouco gordo, de boné e óculos e parecia voltar de uma pescaria. Naquele momento um santo provavelemente.
A figura arrumou uma corda e tirou o carro do acostamento levando-o para uma vila de casas.
Depois me fala:
-Vamonos pra Felixlândia, achar um mecânico.
15 Km de papo. Ele disse:
-Que engraçado... quando vi vc acenando achei que era meu filho mais velho.Puxa vida...
-Qual o nome do Sr.?
-Júlio.
-João, prazer.
-Estava aqui pensando no meu irmão menino, ele tá mal, doente... meu filho de nove anos é muito ligado à ele e também sofre, isso corta o coração da gente...
Seu Júlio é medico. Funcionário da prefeitura de Felixlândia e tb de outra cidade próxima, é clínico geral, gastroenterologista, especializado em Medicina do trabalho, e perito judicial. Por alguma questão política com a Prefeitura não muito bem entendida está afastado, de férias forçadas. É também viúvo, diabético, precisa operar a próstata, adora pescaria os filhos e o irmão doente:
-Outro dia fizemos uma viagem de Minas até Lima no Peru. Fui com meu filho mais novo buscar meu irmão. Na volta, percebi que ele tinha entrado ilegalmente no Brasil, nínguem carimba nada, menino.
-Uma viagem destas por metade da América Latina?
-É, menino... muito bonita... Argentina, Chile, Colômbia...
-O Sr. tá me lembrando o filme do Che Guevara, quando jovem... o Sr. viu?
Uma risada gostosa antes de responder
-Vi claro. Lindo filme tenho o dvd...
Chegamos às 21:00hs em Felixlândia e toca correr atrás de mecânico.
-Seu Júlio, agradeço demais pela ajuda mas não quero atrapalhar....
-Deixa disso, menino , Nào se preocupe.
Seu Júlio, era uma personalidade da cidade, todo mundo conhecia, pensei por um momento que ele fosse o perfeito... Nas casinhas de vila, falando com a esposa de um, com os filhos em outra casa, mexendo com as moças na rua... todo mundo conhecia seu Júlio.... mas não encontravamos nínguém:
-O Saúva não está, vai ver o Neguinho....
Neguinho falou:
-Que carro é?
-Um Lada.
-Xiiii...
-??
-Melhor coisa é ir no Teco e guinchar.
No Teco de novo a gentileza de seu Júlio me surpreendeu;
-Teco, este aqui é um primo meu, faz um preço baratinho para levar ele pra Belo Horizonte?
-Faço 400 reais.
-No, mui caro...
-Por mim está ok seu Júlio...
Ao nos despedirmos um abraço e uma dedicatória no guia que deixei de presente. Disse à ele que é raro ver esta gentileza toda na cidade grande e me surprendi de novo quando ele citou a fábula de Diógenes (que ele citou como Sócrates):
-Não tem aquela história do Filósofo grego que andava com uma lanterna em pleno dia, dizendo; procuro um homem.... O mundo não tá assim ainda não, menino... tem gente boa no mundo ainda...

É, tem sim, seu Júlio.

8 Comments:

Blogger Unknown said...

gosti

6:41 PM  
Blogger Unknown said...

muito boa a historia. ha esperanca no mundo... agora quanto a comprar um Lada...beijos

9:10 PM  
Anonymous Anônimo said...

Malu disse

A história é linda. Deus existe e o nome da cidadezinha é altamente sugestivo

7:29 PM  
Anonymous Anônimo said...

o amaury me deu seu blog...vou visita-lo volta e meia.boa historia.c/ esse niva vai ter mais...abç daniel bozola

11:09 PM  
Anonymous Anônimo said...

Gordo,

Bela história, pena que tive que ficar sabendo do blog pela Alessandra.

Um Abraço

Megueles

6:58 PM  
Anonymous Anônimo said...

Gordo,

Meu email: miguelpace@msn.com

6:59 PM  
Anonymous Anônimo said...

eu adoro a história do Seu Júlio, sempre releio.Da vontade de ter muita gente assim no planeta. Acho que a gente é assim, né?

10:38 PM  
Anonymous Anônimo said...

JP

adorei este texto, vc pegou algum dado dele para contato, pessoas como ele, não podem passar apenas uma vez pela sua vida...

5:34 PM  

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